quinta-feira, abril 19, 2007

1972

Não me lembro, mas devem-me ter fechado nesta sala, literalmente forrada a alcatifa dos anos 70, há algumas horas.
Fixo a alcatifa do tecto e penso que se existir um paraíso para os ácaros deverá ser parecido com isto.
Duas luzes piscam de forma psicadélica e aleatória - os arrancadores à vida.
Lá fora, inesperadamente trojeva. Olho a vidraça, encoberta quase na sua totalidade por um estore de época, constituído por rectangulos de um amarelo encardido orientados verticalmente.
O reflexo das lâmpadas psicadélicas reflecte-se no vidro a todo o momento e simultaneamente ouvem-se os trovões muito próximos, sem dar para perceber se uma coisa está relacionada com a outra, se o reflexo vem de dentro ou de fora, dos céus.
Encontro-me a trabalhar numa mesa de reuniões gigantesca em forma de urna achatada.
Do lado oposto à janela exterior, existem mais duas janelas com cortinas de um amarelo papiro. As janelas encontram-se entabuadas por falta de utilidade, com certeza, em tempos serviriam para o patrão controlar a fábrica.
Das paredes pendem fios eléctricos da cor das cortinas e as paredes estão decoradas com fotografias da fábrica que contam a história da sua evolução, desde aquela que mostra a sua não existência, a preto e branco, onde se pode ver uma espécie de feira com juntas de bois e agricultores, até à mais moderna de 1993 recortada por uma estonteante moldura dourada.
Cheira intensamente a alcatifa suja e aspirada vezes sem fim, como descrever este cheiro de repartição de finanças, denso, sufocantemente burocrático?
De trás da janela entaipada vem o constante matraquear das prensas de estapagem, qual locomotiva a vapor eternamente imobilizada num movimento circular que nunca chega ao próximo apeadeiro.
Desisto de esperar, rasgo o bilhete de primeira e saio pela porta da estação.

quarta-feira, abril 18, 2007

Sul

O Tejo segue sereno, ao longo dos esteiros e dos apeadeiros abandonados da velha linha.
Para lá começa outro mundo, a imensa superfície verdejante e ondulante do além Tejo.
O Sul faz real sentido aqui.
Só se viaja verdadeiramente para Sul.
O comboio segue para Norte, indiferente às minhas divagações, demorando as três imutáveis horas de há 40 anos, como se as duas cidades teimassem em não se aproximar.

Quando o tempo deixar de fazer parte da viagem, deixaremos de viajar.
O desencantamento provém da facilidade.

segunda-feira, abril 16, 2007

Díalogos da vida conjugal

- Eu mudo,
tu não.
- Eu surdo.