terça-feira, outubro 14, 2008

8 1/2

O filme passa-se em três planos, o do filme em si que estamos a ver, o do sonho/pensamento/recordação do realizador-actor e o do filme que está a ser rodado dentro do filme.
O elemento que interliga os três planos e dá harmonia ao filme é em cada um dos três planos respectivamente Fellini/Realizador-actor/Realizador que são obviamente a mesma pessoa.
Fellini parece aproveitar uma falta de inspiração total e uma total ausência sobre o que falar para fazer um filme à volta disso mesmo...
O filme (e o filme dentro do filme) parecem ser numa primeira abordagem uma tentativa de redenção das fraquezas morais da personagem (o próprio Fellini), uma agri-doce recordação dos momentos alternadamente idílicos e drámáticos da sua infância, terminando na sublimação de toda a sua vida num cenário onírico onde se misturam infância e família com a luxúria e o amor das imensas mulheres da sua vida.
A sequência chave do filme, e a mais bela, passa-se já perto do final, numa viagem de carro com Cláudia (Claudia Cardinalli), etérea ao volante, e Guido (Marcelo Mastroiani) ao seu lado. Fellini cria um efeito de luz/sombra na cara de Guido em diagonal, só se vendo os olhos do realizador, contemplando Cláudia, como que transmitindo a anulação de uma personagem pelo brilho e deslumbramento da outra.
Guido num desespero final pensa ter encontrado uma saída para as suas contradições, imaginando uma hipotética mulher amada perfeita, que seria Cláudia (no filme e no filme dentro do filme), que o obrigasse naturalmente a transformar-se noutra pessoa através do Amor.
Mas ela diz-lhe algo tipo: "Tu és incapaz de amar" e ele reconhece que também não acredita que as pessoas se possam modificar por alguém.
Consumado o desastre do filme, sintetizado na inutilidade de uma majestosa nave espacial e de uma ridícula conferência de imprensa, em que o realizador nada conseguiu dizer, Fellini/Guido embalado pela voz matraqueante da personagem do crítico de arte intelectualoide (hilariante por sinal!), sempre presente ao longo do filme, fecha o filme no segundo plano referido, o do sonho, com uma brecha de esperança, fundindo os três planos num só, juntando em comunhão harmoniosa todas as personagens que foram aparecendo e deixando uma ideia, a de que temos que tentar aceitar os outros como eles são e nós próprios fazermos um esforço de transformação possível...
Pareceu-me que Fellini quis mostrar com esta cena final que se por um lado, foi o Cinema que desgraçou Fellini/Guido, proporcionando-lhe uma vida de amantes e a ruptura final com a sua mulher, após esta constatar a humilhação da auto-biografia pateticamente óbvia do último filme, será também o Cinema que em última instância o salvará como instrumento e forma de sonho.

sexta-feira, fevereiro 01, 2008

Leitura bi-direccional

Visto que ela não aparecia, acendi mais um cigarro e pedi mais um gin tónico.
nada me ocorre para lhe dizer,
antevejo um momento constrangedor
um caso perdido,
periclitante desfecho este quando nada há para dizer, remetendo directamente

para este post...



terça-feira, janeiro 08, 2008

Matança do Reco

Mais uma vez comprovei a minha total inaptidão para as artes barrosãs, em mais uma tentativa ridícula de me aproximar das minhas "raízes".
Para além de ter sido desclassificado à partida da prova de galhardia e coragem que é agarrar o bicho, ainda me delegaram a humilhante tarefa de segurar na bacia do sangue enquanto o matador espetava a faca.
A coisa correu tão bem que o reco deu uma patada no raio da bacia tendo a mesma ido aninhar-se caprichosamente na cabeça do meu pai, cobrindo-o de sangue da cabeça aos pés.
(Nem os irmãos Marx fariam melhor)
Há fotografias que o comprovam, isto se o sangue não tiver dado cabo da máquina ou do filme.
Para além disso acumularam-se as mazelas dos participantes, que foram desde as costas empenadas, um joelho estriquinado, um dedo cortado e dois egos gravemente feridos.

Acho que no final, feitas as contas, os porcos foram os que menos sofreram!

quinta-feira, janeiro 03, 2008

"HÁ JÁ MUITO TEMPO QUE NESTA LATRINA O AR SE TORNOU IRRESPIRÁVEL"

O céu pulveriza a noite de gotículas que se suspendem no ar e molham a respiração.
Os candeeiros espiam-nos por cima do ombro e cochicham imoralidades abençoadas.

A Escória
fez história
do Astória,

Derrubou a estátua,
De alguém que já niguém sabia quem era
ergueu um MCDonalds,
Que toda a gente sabe o que é
tornou tudo branco, circular...

A Escória
fez história
do Astória,

De dentro ressoa o inevitável brasileiro
Em vez da Luxúria num esgar de berreiro
retorçendo os membros enquanto esventra o arquitecto paneleiro
O Insólito do alumínio branco e do cheiro a hamburgueres faz-me vomitar

quarta-feira, janeiro 02, 2008

Este é o tempo

Este é o tempo dos balanços e das mudanças inadiáveis, para que tudo fique na mesma, ou um pouco pior, mas que não se note
- Retoquemos a pintura desbotada do rosto de fim de noite.

No fim da leitura de uma balada exótica, por terras de África, simbolizada no rio que corre para o fim do mundo, apatece-me escutar una cancion triste aos caudais anónimos do Beça ou do Terva...
Hoje em dia, já não é só o Níger, são todos os rios que correm para o fim do mundo.

segunda-feira, outubro 08, 2007

Nevoeiro

À vista dos Leões


Uma palmeira trópico-psicadélica



Indicou-me o caminho do plano B

terça-feira, junho 26, 2007

Porque hoje são 26 de Junho

... fiquei num "trinta e um".


Heloisa Nau

terça-feira, junho 12, 2007

Ai meu Santo António

Meu Santo Antoninho
Que anda meio mundo a foder o outro
E o fodido é sempre o povinho

Heloisa Nau

quinta-feira, abril 19, 2007

1972

Não me lembro, mas devem-me ter fechado nesta sala, literalmente forrada a alcatifa dos anos 70, há algumas horas.
Fixo a alcatifa do tecto e penso que se existir um paraíso para os ácaros deverá ser parecido com isto.
Duas luzes piscam de forma psicadélica e aleatória - os arrancadores à vida.
Lá fora, inesperadamente trojeva. Olho a vidraça, encoberta quase na sua totalidade por um estore de época, constituído por rectangulos de um amarelo encardido orientados verticalmente.
O reflexo das lâmpadas psicadélicas reflecte-se no vidro a todo o momento e simultaneamente ouvem-se os trovões muito próximos, sem dar para perceber se uma coisa está relacionada com a outra, se o reflexo vem de dentro ou de fora, dos céus.
Encontro-me a trabalhar numa mesa de reuniões gigantesca em forma de urna achatada.
Do lado oposto à janela exterior, existem mais duas janelas com cortinas de um amarelo papiro. As janelas encontram-se entabuadas por falta de utilidade, com certeza, em tempos serviriam para o patrão controlar a fábrica.
Das paredes pendem fios eléctricos da cor das cortinas e as paredes estão decoradas com fotografias da fábrica que contam a história da sua evolução, desde aquela que mostra a sua não existência, a preto e branco, onde se pode ver uma espécie de feira com juntas de bois e agricultores, até à mais moderna de 1993 recortada por uma estonteante moldura dourada.
Cheira intensamente a alcatifa suja e aspirada vezes sem fim, como descrever este cheiro de repartição de finanças, denso, sufocantemente burocrático?
De trás da janela entaipada vem o constante matraquear das prensas de estapagem, qual locomotiva a vapor eternamente imobilizada num movimento circular que nunca chega ao próximo apeadeiro.
Desisto de esperar, rasgo o bilhete de primeira e saio pela porta da estação.

quarta-feira, abril 18, 2007

Sul

O Tejo segue sereno, ao longo dos esteiros e dos apeadeiros abandonados da velha linha.
Para lá começa outro mundo, a imensa superfície verdejante e ondulante do além Tejo.
O Sul faz real sentido aqui.
Só se viaja verdadeiramente para Sul.
O comboio segue para Norte, indiferente às minhas divagações, demorando as três imutáveis horas de há 40 anos, como se as duas cidades teimassem em não se aproximar.

Quando o tempo deixar de fazer parte da viagem, deixaremos de viajar.
O desencantamento provém da facilidade.

segunda-feira, abril 16, 2007

Díalogos da vida conjugal

- Eu mudo,
tu não.
- Eu surdo.

quarta-feira, março 07, 2007

Vocação

A falta ou desconhecimento de vocação é a minha maior angústia.
O início da "Tabacaria" do Pessoa (fica sempre bem tratar os poetas apenas pelo apelido, como se tivessemos acabado de estar em amena cavaqueira com eles numa das célebres tertúlias da brasileira) retrata bem o que eu sinto:
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Faz anos que penso nisto e nunca chego a conclusão nenhuma, ou chego sempre a uma conclusão diferente, o que é pior.
Quando mo perguntam costumo responder maquinalmente que "Gostaria de ser líder de uma banda de rock", que é a coisa mais absurdamente sincera que eu consigo responder.

Unknown Pleasures

Puro Culto, puro anos 80.

segunda-feira, março 05, 2007

Deolinda

A Deolinda para mim era a Linda.
Recordo as suas mãos grossas retorcidas pelo trabalho, desproporcionadas naquele corpo franzino e corcunda, que pegavam em mim com tanta firmeza.
Amarrava com baraços as portas dos armários das panelas e sorria docemente com uma paciência infinita.
Levava-me com ela sempre que ía lavar a roupa perto do moinho do cubo.
Há trinta anos já era velha, sempre a conheci velha, mas com uma força inesgotável.
Agora com 93 o tempo já lhe tirou a genica. Os seus olhos afundados nas rugas marejaram de lágrimas mal me viu e não mais me largou a mão até nos separamos.

quarta-feira, fevereiro 28, 2007

A vida dos outros

Este filme é do melhorzinho que vi ultimamente. O realizador é um puto Alemão de 33 anos chamado Florian Henckel Donnersmarck e ganhou o Óscar para o melhor filme estrangeiro.

Vale a pena ver nem que seja numa perspectiva de documentário histórico.

Os métodos e a lógica da Stasi, mítica polícia política da antiga RDA, são muito bem retratados, assim como o cinísmo e a decadência dos valores subjacentes ao aparelho.

A personagem Gerd Wiesler, o fiel agente do sistema à volta do qual gira todo o filme é absolutamente desconcertante e maravilhosamente bela, humana, apaixonante...

PS: Florian, estás fodidinho para o 2ºfilme...

Acordar com o galo

A minha nova morada está impregnada de ruralidade, substância de que a minha memória melancólica e saudosista se alimenta, recordando os tempos em que subia a rua 5 de Outubro a desviar-me das bostas fumegantes das vacas.
Para começar moro num largo, não numa praça urbana com esquadria de arquitecto definida, mas num largo, o largo da Ramada Alta, onde em tempos deveriam ter existido belos vinhedos.
No largo existe uma pequena igreja de aldeia com campanário, que parece ter sido télé-trasportada de outras latitudes, tal a inverosimilhança com o que a rodeia, e por fim acordo todos os dias com o cantar do galo a sobrepor-se ao ronco dos motores dos carros.
Descobri há dias onde moram esses galos, parece que em tempos um excêntrico professor da Escola Carolina Michaelis decidiu fazer uma criação de garnizés nos jardins da escola, construindo um lago e abrigos para os bichos e desde então a criação não para de crescer.
Uma velhota que passava por acaso disse-me que os bichos sobreviviam da bondade de algumas pessoas que todos os dias atiravam comida por entre as grades da escola.